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Família Acolhedora: um direito, um cuidado, uma rede de proteção que transforma acolhimento em esperança

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Duas mulheres de Porto Velho (RO), abriram as portas de suas casas para acolherem adolescentes que estão no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento. Integrantes do Projeto Família Acolhedora, Ângela Coutinho cuida de uma jovem de 16 anos com síndrome de Down e autismo nível três de suporte, enquanto Adriana Gomez acolhe uma adolescente haitiana de 17 anos. 

O projeto foi implantado em Porto Velho (RO) em 2018, de forma discreta, e atualmente atende ao menos 15 crianças. Em 2024, a iniciativa ganhou força e maior visibilidade. As crianças e adolescentes vivem em um lar institucional que recentemente passou a se chamar Casa Criar

Os menores de 18 anos chegam no lar institucional pelo conselho tutelar que atende denúncias de negligência, maus-tratos, abusos ou crianças que são encontradas em situação de rua. Depois desse processo são levadas para a instituição e é aí que entra em cena a família acolhedora. 

A família acolhedora é um trabalho social no qual a pessoa interessada recebe formação e acompanhamento para acolher a criança ou adolescente na própria casa, até que ele ou ela retorne para a família ou seja encaminhado para a adoção. Nesse período o acolhedor assume todas as responsabilidades e os cuidados de uma família de forma provisória. 

Previsto no artigo 34 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e regulamentado em Porto Velho pela Lei nº 2.551, de 7 de dezembro de 2018, o serviço de acolhimento familiar garante proteção a crianças em situação de vulnerabilidade que precisaram ser afastadas da família biológica.

Atualmente, em todo o estado de Rondônia, apenas Porto Velho e Ji-Paraná possuem o Serviço instituído. Os requisitos para participação no programa mudam de acordo com a localidade, conforme legislação própria. 

A juíza Kerley Regina Alcântara, da Vara da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO), destaca a importância do programa Família Acolhedora como alternativa ao acolhimento institucional. Para ela, a modalidade garante um cuidado mais próximo, humano e individualizado, reduzindo os impactos que a retirada da criança de seu núcleo familiar pode causar.

De acordo com a magistrada, o acolhimento em família traz benefícios não apenas imediatos, mas também prepara a criança para etapas futuras da vida, como a adoção. “Esse contato com uma família, ter regras, responsabilidades e uma rotina definida, prepara a criança para a adoção e evita dificuldades quando ela chega em uma nova casa”, explica.

Kerley Regina enfatiza ainda que as famílias acolhedoras passam por capacitação para compreenderem seu papel temporário, afastando receios comuns sobre vínculos afetivos. “Elas são capacitadas para ter uma relação de afeto, mas não de pertencimento”, afirma, lembrando que o objetivo principal é dar suporte à criança e proporcionar referências de convivência que favoreçam o crescimento saudável, até que o futuro da criança seja definido.

A juíza também reforça que a experiência no seio de uma família proporciona uma vivência de normalidade que uma instituição dificilmente conseguiria oferecer. Nesse sentido, a Família Acolhedora atua como um elo de proteção, de cuidado e de apoio, garantindo que crianças e adolescentes tenham a chance de crescer em um ambiente mais próximo da realidade de um lar.

Família Acolhedora Ângela Coutinho 

Em 2020, durante a pandemia de Covid-19, enquanto o mundo se fechava dentro de casa, Ângela Coutinho abriu a sua. Até então, ela trabalhava como cuidadora no Lar do Bebê, em Porto Velho. Foi nesse período que surgiu a proposta da assistência social: se os cuidadores estariam dispostos a levar algumas crianças para casa, caso houvesse autorização judicial.

Entre os rostos que poderiam ser escolhidos, um já havia escolhido Ângela muito antes. “No meu primeiro dia no abrigo, ela estava no portão. Pegou na minha mão e me apresentou a todos os funcionários, como se dissesse: ‘minha mãe chegou’. Eu nunca esqueci aquele momento”, conta emocionada.

A menina, que na época tinha 11 anos, tem síndrome de Down e TEA com nível 3 de suporte. Desde então, a relação entre as duas se fortaleceu. Em julho de 2020, a Justiça autorizou que a adolescente fosse morar com Ângela, onde permaneceu por 1 ano e 2 meses até retornar à unidade de acolhimento institucional.

Após esse primeiro contato, surgiu a proposta de que Ângela assumisse oficialmente a menina, pelo Programa Família Acolhedora. Ela passou por capacitações e aguardou uma mudança na secretaria em que trabalhava, para estar apta a participar do projeto. Só então a autorização foi concedida, e a menina pôde finalmente ir morar em sua casa.

O caminho, porém, não foi fácil. A ausência de diagnóstico correto trouxe insegurança e crises. Ângela recorda que a menina apresentava comportamentos agressivos e chegou a quebrar objetos em casa. Em determinado momento, foi internada na ala psiquiátrica do Hospital de Base por 20 dias até que os médicos conseguissem estabilizar sua medicação.

“Foi muito difícil. Se eu tivesse chegado sem conhecê-la, provavelmente teria desistido. Mas eu já tinha esse vínculo, sabia lidar com ela. Foi isso que me deu forças para continuar”, relembra.

Ângela ainda precisou se adaptar à nova rotina. As manhãs ficaram dedicadas à escola, e as tardes foram preenchidas por terapias. Em casa, a jovem segue uma rotina rígida: banho, medicação e descanso em horários fixos. “Tudo precisa estar dentro da rotina dela para que as coisas funcionem bem. Mas ela é muito alegre, gosta de festas, de música, de estar com gente. Onde chega, chama atenção”, relata.

Para Ângela, a chegada da adolescente mudou completamente a dinâmica de sua vida. “Antes, eu podia sair, viajar, tinha liberdade. Hoje, minha rotina é outra. Mas eu sinto que fui escolhida. Eu digo que Deus colocou ela no meu caminho, e eu aceitei essa missão”, afirma.

A relação se consolidou de forma natural. A menina chama Ângela de mãe e o marido dela de pai. “Eu nunca disse que não éramos a família dela. Para ela, nós somos. E é isso que importa”, afirma.

Para ela, o acolhimento exige não apenas vontade, mas também condições estruturais. “Não é só abrir a porta de casa. É garantir que aquela criança tenha dignidade, saúde, rotina, cuidado. E isso custa. O programa é importante, mas precisa ser olhado com mais seriedade pelo municipio”, destaca a responsável.

Há três anos com Ângela, a adolescente já está com 16 anos e conquistou autonomia no dia a dia. Ela toma banho sozinha, se veste e se alimenta sem ajuda, seguindo a rotina estabelecida por Ângela. Apenas algumas atividades, como escovar os dentes, ainda recebem supervisão para garantir segurança e higiene.

“Sempre incentivei que ela fizesse tudo sozinha dentro do que consegue. A autonomia dela é muito importante para o desenvolvimento e para a confiança que ela tem em si mesma”, explica Ângela.

Apesar de ser constantemente questionada sobre a adoção definitiva da adolescente, Ângela explica que não tem condições de assumir esse passo. Isso porque, se a adotasse, a jovem perderia o direito ao BPC e ao auxílio fornecido pelo município às famílias acolhedoras, que garante boa parte dos custos com saúde.

“Se fosse só pela vontade, eu adotaria. Mas o custo é alto. Se um dia eu não puder mais cuidar, ela precisa estar amparada. Meu maior desejo é que ela encontre uma família definitiva, que seja só dela”.[a]

Ainda assim, Ângela se emociona ao falar da relação que construíram. “A minha maior alegria é vê-la feliz. Eu sei que, de alguma forma, eu mudei a vida dela, mas ela também mudou a minha. É um acolhimento que vale por todos.”, conclui.

Família Acolhedora Adriana Gomez

Adriana viveu em um orfanato de crianças em Porto Velho, em um período em que ainda não existia o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Criada na década de 1990, a legislação é responsável por assegurar aos menores de 18 anos os direitos fundamentais à vida, além de atribuir ao Estado e à sociedade a responsabilidade pela proteção e a garantia desses direitos.

“Morando lá, eu sei como funciona, eu vi, eu vivenciei tudo isso. Então, a gente sabe como isso prejudica, como nos dá o estado de não pertencimento. Desde o início eu falava que, quando crescesse, ia ajudar alguém. Então, quando vi o projeto, pensei: vou fazer a diferença na vida de alguém”, conta Adriana, que se inscreveu para a Família Acolhedora antes do período da pandemia de Covid-19.

Apesar de receber um auxílio municipal para a ajuda com as despesas da adolescente que acolhe, Adriana conta que muitas vezes as crianças chegam apenas com a roupa do corpo e todos os gastos são arcados desde do início sem aviso. A adolescente chegou à família com 15 anos, e um dos maiores desafios foi a comunicação. 

A adolescente era retraída, reprimida, não olhava nos olhos e comia abraçada ao prato. Desde o início, porém, se deu muito bem com Adriana. “Ela passou por muita privação, mas é uma menina maravilhosa, cheia de piadas. Foi complicado ensinar para ela que não precisava comer tudo de uma vez. Mesmo temporariamente, ela faz parte da nossa família e se dá muito bem dentro do seio familiar. Ela não sai daqui enquanto não quiser”, relata Adriana. 

A medida protetiva é encerrada quando o adolescente completa 18 anos, alcançando a maioridade. No entanto, no âmbito do Serviço de Acolhimento Familiar, pode haver exceção: mediante parecer técnico, é avaliado o grau de autonomia do adolescente. Essa avaliação específica permite decidir se há necessidade de manter o acolhimento até os 21 anos, conforme prevê o  Art. 2º do ECA[b]

Um dos desafios de adaptação foi o sono. A adolescente não dormia, tinha picos de estresse e mantinha a luz ligada. Por muito tempo, dormiu com os pais temporários até conseguir dormir sozinha. Além disso, a adaptação com o marido de Adriana foi mais difícil. O vínculo só começou quando ela o viu ajudando nos afazeres domésticos.

“A convivência comigo era só um oi, um tchau. Ela ficava me observando lavar a louça. Depois chegou e perguntou: ‘Nossa, você lava louça, né?’ Foi um longo processo de aproximação até nos tornarmos amigos”, relembra o marido de Adriana, Gledson Magalhães.

Um dos cuidados de Adriana com a menina é garantir que ela se sinta pertencente à sua identidade e cultura. “Eu procurei a família e os amigos da infância dela, a gente mantém contato com a raiz da língua dela para que não esqueça o crioulo. Não queremos que ela ache que a terra dela é um lugar ruim. Tem a parte sofrida, mas também tem a parte boa”, explica. 

Adriana conta que a aproximação foi facilitada pelo fato de seu pai ser preto. Já o cuidado com o cabelo foi outro momento delicado: “Eu tive dificuldade de entender o cabelo, dificuldade de entender o cuidado da pele. Ela queria alisar porque queria alisar. Foi depois de 5 meses que chegou aqui em casa que começou a fazer trança, teve toda essa quebra de paradigmas”, relata.


Atualmente, a menina está no último ano da escola, trabalha como menor aprendiz e recentemente aprendeu a andar de ônibus, o que Adriana considera uma das maiores conquistas. “Digo que hoje ela é quase 100% independente no dia a dia. Agora ela aprendeu a andar de ônibus: vai de aplicativo para a escola e volta de ônibus. Ela até brincou que parecia a menina de um dorama, porque era a única que não sabia andar de ônibus. Ela tem liberdade, mas é uma liberdade controlada. Não é a maldade que está nela, mas no outro”, explica Adriana.

Todo o processo de adaptação contou com apoio da terapia. Uma das preocupações de Adriana era evitar que suas próprias dores se transformassem nas dores da menina. “No início, nos primeiros meses, não foi alegria. Foi um misto de dúvidas e medo. Mas hoje, ver ela andando sozinha, indo ao shopping, a gente sempre acompanha pelo celular: ‘chegou?’, ‘está lá?’. Conversamos muito. Eu digo: olha, quando um estranho falar contigo, não dá confiança. Ela já sabe que tem que estar sempre atenta. E trouxe as amigas dela para dentro de casa. Vêm aqui, brincam, estudam juntas”, conta Adriana, emocionada ao ver o crescimento da filha. “Hoje é outra menina: se comunica, ri, brinca, fala das coisas que gosta, pede para comprar roupa, opina na comida, escolhe o que quer comer. No início, só dizia ‘tanto faz’, ‘qualquer coisa’. Hoje não, hoje ela sabe o que quer. Isso mostra o quanto cresceu e amadureceu”.

Adriana também destaca os sonhos da filha: “Ela fala em trabalhar, pensa em fazer um curso de informática, maquiagem. Eu digo que tudo é possível, só precisa estudar e correr atrás. O importante é não parar, não desistir. A nossa maior alegria é ver essa mudança: de uma menina retraída, com medo, sem confiança, para uma jovem independente, cheia de vida e de sonhos. Isso não tem preço. Vale cada desafio, cada noite sem dormir, cada esforço. A recompensa é vê-la bem, feliz e com esperança”, resume.

De forma tímida, a adolescente também expressa como se sente com a família acolhedora: “Eu sou feliz aqui com minha família e amo jogar bola na escola, como queimada e vôlei”, revela. 

PAPEL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

O Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO) tem exercido papel estratégico no fortalecimento do programa. Embora a execução seja de responsabilidade do município, o TJRO atua como articulador, apoiador e fiscalizador. Isso significa que o Judiciário acompanha de perto cada criança acolhida, garantindo que os direitos sejam respeitados.

Márcia Benarrosh, chefe da equipe de acolhimento institucional, reforça que o fortalecimento recente se deu também pela articulação com o Judiciário. “A execução do programa é responsabilidade do município, que deve garantir orçamento e equipe técnica. O Tribunal de Justiça entra como apoiador e fiscalizador, e essa parceria foi um divisor de águas para o avanço do serviço”, destaca.

O programa ainda enfrenta desafios, principalmente na divulgação. “Ainda é um trabalho tímido, que precisa de mais investimentos e campanhas contínuas. O ideal é que 100% dos acolhimentos necessários sejam feitos por famílias acolhedoras, não em instituições”, observa Márcia.

O Judiciário acompanha de perto cada caso, realizando avaliações periódicas, visitas domiciliares e fiscalizando o cumprimento dos deveres das famílias. Além disso, o programa conta com campanhas de divulgação e capacitação organizadas em parceria entre o município e o TJRO, ampliando o número de famílias dispostas a acolher temporariamente crianças e adolescentes.

O TJRO funciona como “porta de entrada” para o acolhimento familiar. Isso porque nenhuma criança pode ser encaminhada a uma família acolhedora sem uma decisão judicial. É a Juíza da Vara da Infância e Juventude quem avalia a situação de vulnerabilidade, determina a medida protetiva e define o período em que a criança ficará sob cuidados provisórios.

Sayonara Souza, Chefe da Coordenação do Núcleo Psicossocial do TJRO, conta que existem vários casos de crianças que passaram pela família acolhedora e foram adotadas ou voltaram para suas famílias biológicas e o vínculo permanece. “Essa família acolhedora passa a ser uma madrinha, tia, passa a fazer parte da vida da família como um ponto de apoio, cuidado, orientação e ajuda”, descreve. 

O acompanhamento também é constante. Durante todo o período de acolhimento, o Judiciário recebe relatórios técnicos elaborados pela equipe psicossocial da Secretaria Municipal de Inclusão e Assistência Social (SEMIAS), que apontam a evolução da criança e indicam se já existem condições para o retorno à família de origem ou, em último caso, a colocação em família substituta via adoção. Esse controle judicial impede que a medida se prolongue além do necessário e reduz os riscos de institucionalização prolongada.

Para a assistente social municipal, Solange Boaventura, as crianças e adolescentes em vulnerabilidade social trazem um impacto prejudicial. “Hoje elas são crianças e amanhã serão adultos. Atualmente o que a gente mais vê é a reprodução do ciclo de violência. Aquela criança que passa por situações de vulnerabilidade, se ela não tiver um acompanhamento técnico, psicoterapia, ela tende a reproduzir aquilo que viveu”, explica.

Outro ponto relevante é que, por meio de audiências concentradas, a juíza reúne Ministério Público, Defensoria Pública, equipe técnica e a própria família acolhedora para avaliar cada caso. Esse espaço de escuta e decisão conjunta dá transparência ao processo e assegura que todos os envolvidos participem ativamente na construção da solução.

O Judiciário tem ainda um papel pedagógico e indutor de políticas públicas. Ao exigir relatórios, prazos e resultados, pressiona os demais órgãos da rede a atuarem de forma ágil e articulada. Isso significa que o TJRO não apenas decide, mas também impulsiona a efetividade da política de acolhimento no município. 

Para se tornar voluntário da Casa Criar ou uma família acolhedora, o cidadão pode entrar em contato com a SEMIAS. Após esse contato, passará por entrevistas, capacitação obrigatória e avaliação psicossocial para ser habilitado a acolher crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. 

Por: Raíssa Fontes e Bruna de Paula

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